Uma história de fé e traição
por Braulia Ribeiro
(extraído do site http://ultimato.com.br/sites/brauliaribeiro)
Estou freqüentando uma igreja bem antiga na cidade de Kailua onde moro. A igreja foi a primeira fundada em 1820 pelos primeiros missionários. A história de missões nas ilhas Sandwich, como o Havaí era conhecido na época, é uma daquelas que nos maravilha e horroriza ao mesmo tempo. Maravilha porque nos faz perceber como a eternidade se sincroniza com a história humana de maneira precisa e extraordinária. Horroriza porque mostra o quanto nós humanos somos capazes de corromper os planos tão perfeitos de Deus.
Antes da chegada dos ingleses o povo nativo viva massacrado debaixo de um sistema de castas parecido com o da Índia. As linhagens nobres e sacerdotais oprimiam o povo com um código religioso que punia qualquer infração por mínima que fosse com a morte. Pessoas eram jogadas aos tubarões ou no vulcão. O sistema de kapu punição da quebra da lei com sacrifícios humanos, não é original daqui. Foi trazido por navegantes Taitianos alguns séculos antes da chegada dos missionários. No século XIX o rei Kamehameha conseguiu através de muito derramamento de sangue estender seu reinado para todas a ilhas. Quando finalmente reinou a paz a esposa favorita de Kamehameha, Rainha Kahumano cochichou em seu ouvido:
- Querido, é tempo de acabarmos com o kapu e dar paz ao povo.
O rei concordou e o povo havaiano fez uma coisa reconhecida como inédita pelos antropólogos. Eles eliminaram a própria religião. Não mais kapu, não mais sacrifícios humanos à deusa Pele, que é a lava do vulcão ou aos outros deuses. O estranho é que não substituíram o kapu com nada. Não conheciam mais nada. Haviam lendas no entanto que falavam de uma caixa preta que um dia seria entregue ao rei. Esta caixa iria conter a revelação que seria seguida pelo povo havaiano. Em 1820 os primeiros missionários aportam na baía de Kailua na Big Island. Eles ancoraram exatamente onde antes estava erigido um dos altares em que pessoas eram sacrificadas.
Felizes os missionários saltaram do barco com um novidade. Uma bíblia já traduzida na língua havaina. O trabalho havia sido feito por um havaiano que anos antes escapou da morte fugindo do kapu num barco inglês. Este havaiano era o jovem Henry Opukaha’ ia.
Henry com a idade de 16 anos embarcou num navio que o levou ao redor do mundo até aportar em Nova York. Henry era inteligente e apesar de amar seu povo sonhou com uma terra melhor durante as perseguições implacáveis do Kapu. De Nova York Henry foi morar com o capitão do navio em Connecticut. Com sua família aprendeu um pouco de inglês, aprendeu a ler e começou a conhecer o Deus cristão se tornou uma maravilhosa alternativa pra terrível religião da ilha. Por alguns meses Henry trabalhou como empregado itinerante em fazendas ainda falando um inglês rudimentar mas com uma sede imensa de conhecer mais.
Até que um dia se viu na escadaria da universidade de Yale em New Haven. Ali ele entendendo que aquele era um local de ensino, chorou pensando em como seria bom estudar mais para poder voltar e ajudar seu povo. Um outro jovem passava por ali no momento e o viu chorar. Era o filho presidente da faculdade e quando ouviu a história de Henry o levou a seu pai que terminou por adotá-lo.
Henry então se tornou o primeiro havaiano a se tornar doutor em línguas, a descrever a gramática da língua e compor um dicionário. E por causa da influência de fé que recebeu das famílias americanas se tornou um apaixonado tradutor da Bíblia. Seu sonho era voltar ao Hawaii com a bíblia traduzida. Infelizmente Henry contraiu uma febre tifóide e morreu em 1818 aos 26 anos de idade.
Depois de sua morte as memórias escritas por Opokaha’ia se tornam um pequeno bestseller entre jovens cristãos. Um grupo de 14 jovens inspirados por ele se dedicam a missões e embarcam para o Havaí. Em 1820 eles aportam pela primeira vez na maior ilha do arquipélago, bem no lugar onde um ano antes o rei Kamehaha havia destruído um dos templos onde se realizava o sacrifício humano.
Os missionários desembarcaram com uma caixa preta nas mãos. Era a bíblia em havaiano traduzida pro Opukaha’ia. O tempo de Deus não podia ser mais perfeito. O povo estava pronto para receber a Palavra e em poucos anos todas as ilhas abraçam o novo Deus que ama e que dá um cordeiro em substituição ao sacrifício humano. Um dos maiores avivamentos da história varre as ilhas. Quase toda a população adulta aprende a ler, e um terço da população se torna cristã.
Quem dera que a história terminasse assim. Não termina. Uma geração passa, depois a outra. Os netos dos missionários muitos deles criados nas ilhas completam os estudos, mas voltam para fazer negócios. O Havaí passa a ser um grande produtor de açúcar e muitas da fazendas pertenciam a eles.
A história daí em diante se transforma numa destas a que já estamos acostumados. O Havaí naquele tempo era um reino governado por uma jovem rainha chamada Lili’uokalani. A corrupção e sede de poder toma dos negociantes e eles formam uma sociedade secreta para trair a rainha e subjugar o reino. Se auto denominam o Clube dos Meninos Missionários. Por serem brancos recebem o apoio do governo americano para a traição que planejam contra a rainha. Apesar da grande inferioridade numérica, eram 400 brancos e mais de 40 mil havaianos, a ameaça do exército da grande potência intimida a rainha que acaba entregando o reino para evitar um banho de sangue.
Os havaianos hoje são minoria na sua própria terra. No governo Bill Clinton os Estados Unidos se desculparam pela traição perpetrada contra a nação. Mas e daí? Oramos hoje por um novo Clube de Meninos Missionários que restaure o mal que foi feito contra este povo.
Fica a pergunta, como os heróis missionários geraram netos que que foram capazes de cometer uma traição tão grande contra um povo que deveriam amar? Como os valores familiares se deterioraram tanto a ponto de justificar o roubo de um país? Como Mamon substituiu o Cristo do sacrifício? Não sei. Só sei que temo por meus filhos, e netos.